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O poder da sincronicidade

Entenda o que é serendipidade, uma avalanche de coincidências e sincronismos que terminam com um final feliz

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O ano de 2001 trouxe um grande marco: minha primeira viagem à Europa. O roteiro incluiria Portugal, Espanha e França. O destino inicial foi uma imposição profissional. Eu faria a cobertura de um evento mundial que, naquele ano, seria na cidade do Porto. Enquanto o dia da viagem não chegava, seguia com a minha vida de repórter. Porém, pouco mais de um mês antes da partida, eu me preparava para uma entrevista com um consultor, conhecido pela pouca disponibilidade. Feliz pela minha sorte, lá fui. Terminada a entrevista, ele fez questão de que conhecesse outros profissionais que trabalhavam ali, gente brilhante que poderia ser fonte para outras reportagens.

 

Um deles era um psicólogo organizacional, professor-doutor da Universidade de Évora, sul de Portugal. Nos primeiros segundos, não entendi uma palavra do que ele disse. Mas, após o estranhamento do início, a conversa fluiu. Disse-lhe que tinha viagem marcada, que seria minha primeira vez no país. Após um breve roteiro sobre Lisboa, ele insistiu que eu deveria conhecer o Alentejo e que fazia questão de me mostrar a cidade. Já em Portugal, após 10 dias em Lisboa, rumei para cinco dias no Alentejo.

 

E lá estava eu, com o meu mais recente amigo português. No dia da minha partida, ele mencionou que em breve estaria em São Paulo. E mais coincidência: constatamos que viajaríamos no mesmo dia e no mesmo voo. Foram 10 horas de conversa. Quando comentei que desejava fazer um mestrado, ele me perguntou por que não o fazia em Portugal. No ano seguinte, eu tinha tudo preparado para o meu primeiro dia de aula na Universidade Nova de Lisboa. Com as minhas asas de Ícaro, numa cidade onde não conhecia ninguém, carregando comigo o mundo e sentindo que era exatamente ali o lugar em que deveria estar.

Anos mais tarde, quando li sobre o significado de serendipidade e tentei identificá-la na prática, a gênese da minha história com Portugal foi a primeira coisa que veio à mente. Serendipidade? É verdade, não é uma palavra fácil, e o seu significado é ainda mais difícil. Trata-se de um fenômeno amplo e multifacetado, cujo sinônimo mais imediato poderia ser “feliz acidente” -— ou uma “descoberta fortuita e não planejada” -— derivado de sorte, providência ou acaso. Ou, ainda, o sincronismo de vários acasos, daí também ser chamada de superencontro.  Muitos já tentaram fazer uma tradução mais amigável, sem sucesso. Alguns gurus da filosofia oriental, por exemplo, sugerem a palavra “sincronismo”.

 

É uma tradução mais digerível, mas não é correta. É preciso que se diga que há muitos acontecimentos simultâneos e infelizes. Quem nunca ouviu falar do clássico sincronismo que envolve uma pessoa andando na calçada e a queda de um vaso da janela do oitavo andar?

A palavra pode parecer nova, mas a serendipidade caminha com o homem desde sempre. Porém, é no mundo dos inventos que se revela de forma mais óbvia. A grande maioria dos avanços científicos são resultados do acaso. Vários pesquisadores afirmaram que sua ideia evoluiu quando eles não estavam trabalhando nela. A aspirina, a insulina, o viagra, a vacina contra a varíola, o teflon, o post-it, entre outros, foram casos de serendipidade. Isto é: uma série de coincidências juntou-se e surgiu algo novo, maravilhoso e desejado.

Apesar de mais notória no meio científico (e romanticamente desejada na vida afetiva), a serendipidade é perseguida em todas as esferas da nossa existência. No mundo corporativo, gestores anseiam por estados de serendipidade. Aqui, o fenômeno é traduzido em ganhos extraordinários, vantagens ou benefícios que não foram previstos. Os EUA invejam a qualidade da inovação das empresas japonesas e a sua capacidade de criar conhecimento sem processar informação.

Como fazem isso? Não fazem. Eles simplesmente cultivam ambientes que favorecem a serendipidade. Enquanto grande parte das empresas ocidentais persegue gestão e sistematização das informações, os japoneses exploram o terreno subjetivo do insight, da intuição e dos palpites de seus funcionários. Para eles, a serendipidade é o caminho mais curto para captar o que está acontecendo dentro da empresa, na concorrência, nos clientes e no mercado onde atuam.

E no cotidiano existe a busca da serendipidade? Sim. No dia de hoje, o leitor, ao abrir alguns links no seu computador, é personagem dessa realidade. Já há aplicativos (e muitos outros estão a caminho) que têm a capacidade de recolher informações dos seus arredores, contextos, percepções e eventos de acordo com o perfil de cada usuário. A ideia é criar artificialmente o fenômeno, nos moldes de “faça a serendipidade trabalhar para você”. E é sabido que a liderança da Google gosta de pensar na sua ferramenta de busca on-line como um “mecanismo de serendipidade”.

Mas é na esfera privada, na vida de todos os dias, que a serendipidade se apresenta com toda a sua magnitude. Quem nunca experimentou um acontecimento profundamente feliz e transformador, fruto de inúmeros acasos raros e sincronizados? E a grande maravilha foi o fator surpresa: você não estava à espera. Mais maravilha: você não estava à espera porque aquilo nunca tinha passado pela sua cabeça, você não sabia sequer que existia ou que era possível. E maravilha final: você se dá conta de que no seu íntimo, no pedaço mais retirado do seu ser, era exatamente aquilo que você desejava com todo o seu coração.

Mas é exatamente o quê?

Apesar de nominar blogues, livros e filmes (e jogos!), o seu significado não é simples. Para além de tudo que já foi dito acima, há definições ainda mais etéreas. Diz-se também que é um fenômeno que acontece de repente, sem intenção; ou quando alguém descobre algo que o faz mudar de vida, ou surge a solução de um grande dilema ou vem a resposta de uma pergunta que pode ou não ter sido formulada. Se o leitor está cogitando que o problema é da língua portuguesa e os entraves de tradução, não é. Em 2004, uma empresa de tradução britânica colocou-a na lista das 10 palavras mais difíceis de serem traduzidas. O que não a impede de figurar em vários dicionários: o Oxford English Dictionary define-a como “a faculdade de fazer descobertas felizes e inesperadas por acidente”, o Webster’s New Collegiate Dictionary, como “a faculdade de encontrar coisas valiosas ou agradáveis ​​não procuradas”.

A dificuldade da tradução não vem da novidade, a palavra não é recente: ela surgiu pela primeira vez em 28 de janeiro de 1754, pelo escritor inglês Horace Walpole numa carta endereçada a um amigo. Nela, ele narra um conto de fadas persa sobre  três príncipes da ilha de Serendip (atual Sri Lanka). Um dia, o rei enviou o trio para uma viagem para que experimentassem a vida, longe da proteção do castelo. No regresso, o rei observou que tinham feito mais do que observações aleatórias. Eles foram capazes de combinar uma série de observações casuais em algo significativo, quase como a solução de um enigma. O que encantou Walpole foi o poder dos príncipes de enxergar além do que é visível. No século 16, o conto foi traduzido. Walpole encontrou-o em uma coleção de contos orientais e resolveu cunhar o termo “serendipity” na carta a seu amigo Horace Mann.

Como encontrar?

A falta de uma definição exata não atrapalha a sua busca: todos procuram a serendipidade ou tentam construir cenários para que ela se manifeste. As empresas veem como uma ferramenta para sobreviver à crise; o mundo digital, como isca para conquistar usuários. E, finalmente, nós, simples mortais, para quem serendipidade também é sinônimo de felicidade.

A questão que se coloca é: como cultivar isso? Podemos treinar para sermos mais “serendipitosos”? Construir um ambiente para que isso se manifeste? Todos os casos práticos e testemunhos indicam que sim. A serendipidade é uma capacidade que pode ser cultivada, adquirida e sustentada (e, como propõe a internet, também comprada e vendida).

A primeira coisa é ser proativo. Como o próprio conto mostra, a serendipidade é uma habilidade. Ela só foi detectada e percebida por um sujeito ativo. Os príncipes puseram-se na estrada e estavam abertos para o desconhecido, para as aventuras e as surpresas inerentes a uma viagem. A postura, o otimismo, a alegria e a entrega transformaram-nos em heróis viajantes. O conto mostra ainda que eles eram observadores sagazes, estavam atentos a cada detalhe do caminho e eram capazes de ver sentido em tudo o que era observado. E é essa habilidade — a capacidade de combinar eventos ou observações de maneiras significativas — que a diferencia da sorte. Serendipidade é ver combinações significativas onde outros não veem.

Outro ponto: estude arduamente. Por mais que as narrativas reforcem, nenhuma descoberta científica foi feita por pura sorte, de forma aleatória. Não foi um mecânico que descobriu a penicilina, por exemplo. Todos os acidentes ou acasos felizes na ciência têm um ponto em comum: cada um foi reconhecido, avaliado e posto em prática à luz da experiência intelectual do descobridor. “O acaso favorece a mente preparada”, disse Louis Pasteur (1822-1896), cientista francês reconhecido pelas suas notáveis descobertas de causas e prevenções de doenças, ele próprio uma “vítima” de sincronismos de eventos intencionais e fortuitos. Entre os seus feitos está a vacina contra a raiva e o método para conservar alimentos (como o leite), a pasteurização.

Abrace a diversidade. A segmentação do conhecimento é importante e faz o especialista, mas não tenha medo de explorar outros saberes. No tópico sobre a construção do “eu” único e poderoso, o filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873) afirmava que o mais alto e harmonioso grau de desenvolvimento que um homem pode atingir vem da fórmula Individualidade + Diversidade = Originalidade. Cultive-se, aprimore-se, percorra o mundo, percorra o outro. E atenção: não se trata da diversidade apelativa e alienante dos dispositivos eletrônicos. É a diversidade com qualidade. Exponha-se a outros saberes, converse com pessoas de outras áreas, fale com desconhecidos. Os livros são fontes preciosas para isso. Procure ler aqueles que sejam de um assunto fora da sua área de trabalho. Na educação grega — um modelo de educação reconhecido e aplicado até hoje (Paideia) —, um soldado que não soubesse poesia jamais chegaria a general.

Mais uma questão: trabalhe arduamente, mas arrume tempo para a contemplação, para a meditação, para a posse de si mesmo. Um dos mais famosos e antigos casos de serendipidade da história foi a de Arquimedes (287 a.C-212 a.C). O matemático grego estava às voltas com a resolução de um problema: o rei queria saber o volume em ouro da sua coroa. Mas como fazer o cálculo sem derretê-la? Reza a lenda que Arquimedes saiu de casa em abalada carreira, seminu, em direção ao castelo, gritando “Eureka” (Descobri!). Isso tinha uma razão: a descoberta fora feita enquanto ele estava dentro de sua banheira, observando a quantidade de água que transbordava dali. Note bem: enquanto ele tomava banho, ele não estava distraído, perdido em seus pensamentos, cantarolando ou falando com o seu criado. Ele estava completamente absorvido na experiência do banho, no prazer do corpo estendido e, finalmente, na água que escapava da banheira para ceder lugar ao seu corpo. Com essa visão ele concluiu que para medir o volume da coroa bastava mergulhá-la em água e calcular o volume da água deslocada.

Vale, ainda, compartilhar os seus interesses e conhecimentos e ser generoso com o interesse das pessoas ao seu redor, no trabalho ou na sua vida privada. Muitas inovações e insights aparecem como continuação, combinação, inspiração – e impulso – do trabalho de outros. A descoberta mais significativa da biologia moderna — a estrutura da molécula de DNA — nunca foi uma pesquisa oficial. Ela aconteceu nas margens das grandes pesquisas e foi “tolerada” pela chefia. Se você não tem interesse num projeto, não impeça outros de seguir em frente. É dessa abertura que nasce a habilidade de fazer conexões, a capacidade de ver combinações onde outros não viram. Esse é o ponto que diferencia a serendipidade da sorte. E, finalmente, reserve tempo para não fazer nada. Todos os casos de serendipidade aconteceram num cenário de ócio e de relaxamento.

É preciso que o ambiente comporte um certo grau de desleixo, de abandono, de indolência. (Note que a gênese da palavra surgiu de uma viagem sem um objetivo definido.) Para além de um contrassenso, esse último pré-requisito é uma verdadeira cara no muro: como é possível falar em momentos de ociosidade e desconexão numa sociedade em que todos os chamados são para a conexão e o foco em objetivos? Onde o tempo que sobra é para responder e-mails e percorrer as redes sociais? É preciso que se encontre um espaço na agenda para tolerar um certo grau de “desperdício”. Porém, o nosso racionalismo coloca mais um obstáculo: diante de tantos afazeres e obrigações, como reservar um tempo para cultivar a arte de encontrar o que não estamos procurando? Como criar um espaço para o inesperado? Ciente desse entrave e como o mercado digital é pródigo em arrumar soluções para os problemas que ele mesmo cria, está a alcance de um clique a oferta de inúmeros aplicativos de serendipidade. Porém, para os estudiosos — como Ohid Yaqub, da Universidade de Sussex, no Reino Unido — esse formato é inútil. Eles acreditam que as tentativas de estabelecer uma serendipidade artificial são sufocantes e impraticáveis. Portanto, enquanto os estudiosos sérios não drenam o terreno desconhecido do fenômeno, não há atalhos. Resta a cada um percorrer o seu próprio caminho.

Vida Simples

Margot Cardoso mora em Portugal há 16 anos e depois de felizes coincidências sincronizadas, exerce uma de suas principais missões: ser mãe do Mateus.

 

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