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A mensagem enviada por um vírus

Que esse tempo de incertezas e suspensão de rotinas possa ser também um tempo de reflexão, um salto de consciência para uma vida com mais significado

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De tempos em tempos, epidemias e catástrofes sacodem o homem e suas certezas. No século XIV, a peste negra varreu do mundo quase 200 milhões de pessoas. Razões práticas à parte, muitos compreenderam como uma espécie de basta divino. E as razões imaginadas para a punição pareciam óbvias: a cobiça, a gula, a embriaguez e a devassidão estavam por toda parte.

Catástrofes, como o terremoto de Lisboa (em 1755), abalaram a Europa e o mundo. Primeiro veio o sismo — com magnitudes de 8,8 a 9 na escala Richter — seguido de um maremoto com ondas de 20 metros de altura. Após a cidade ser reduzida a escombros, os incêndios encarregaram-se de destruir o que sobrou. É o terremoto mais mortífero da história: 12 mil mortos. O fenômeno mereceu a reflexão de filósofos, como Voltaire e Rousseau. Será que vivíamos mesmo num mundo de bem, regido pela bondade e misericórdia de Deus? O despertar dessa consciência depois do terremoto é considerado um marco histórico: o início da Europa Moderna.

 

Se olharmos para esses acontecimentos — à maneira do filósofo alemão Hegel — do alto, avistaremos outros eventos semelhantes; como a lepra, a tuberculose, a gripe espanhola, as grandes guerras. E talvez, no futuro, outros incluam nessa lista, o Coronavírus de 2019/2020. Você já deve ter notado a avalanche de informação e contrainformação e a clássica busca dos culpados. Mas, o que vale a pena fazer nesse momento — para além do isolamento social — é uma reflexão. Vamos pedir emprestado as lentes de Hegel. Acarinhado com o título de  “deus da filosofia” — porque via o mundo do alto e construiu um sistema para compreender o absoluto — Hegel afirma que cada movimento do mundo surge como solução para o anterior. É uma espécie de rearranjo do devir.

Abrande o ritmo

Quando refletimos sobre o estado das coisas, somos tentados a considerar Hegel e acreditar que o universo tem a sua maneira de buscar o equilíbrio. Vejamos. Vivemos na era das alterações climáticas, da poluição dos oceanos e ecossistemas. Apesar do alerta de especialistas e das mudanças visíveis  — aquecimento global, morte massiva de peixes, secas e inundações — países e empresas recusam-se a abrandar o ritmo. O lucro deve ser sempre crescente. E eis que chega um vírus e fecha bares, restaurantes, bancos, academias de ginástica, salas de espetáculos.

O mundo inteiro vive o êxtase do desenfreado direito de ir e vir. Todos viajam para todas as partes do globo. Cidades abarrotadas de turistas. Aviões lotados, aeroportos caóticos e hotéis na sua capacidade máxima. O que chega: a quarentena, a recomendação para não sair de casa, ruas desertas, cidades e países fechados.

Não discrime

Num tempo em que os refugiados chegam a números históricos e são discriminados e considerados uma ameaça para os seus vizinhos mais afortunados. Num tempo de crise e escassez de recursos, onde o responsável é sempre o outro, é sempre o de fora, o estrangeiro. Eis que chega um vírus e mostra que podemos ser nós os discriminados e os segregados. Não há mais o eu e o outro, nós e os outros; os de outro país, de outras etnias, os do outro lado do muro. Podemos ser discriminados por quem está mesmo ao lado. Qual é a nossa culpa? Nenhuma. Simplesmente porque podemos ser portadores de um vírus.

Só o essencial

Num tempo em que corremos de um lado para o outro. Onde se trabalha cada vez mais para gastar mais. Onde o consumo é soberano e gasta-se com o que não é necessário. Escraviza-se adultos e crianças de países pobres em nome de negócios milionários — e supérfluos — como o fast fashion. Surge um vírus que nos obriga a comprar apenas o essencial. Ir ao supermercado? Apenas para o essencial. Ir a farmácia? Somente para o essencial e, em fila, apenas duas pessoas de cada vez.

Num tempo em que deixamos de educar os filhos e os entregamos ao alheamento de visores eletrônicos e a escola. Uma sociedade onde nas livrarias há títulos como “Regras para educar filhos e alunos” numa clara alusão a que o professor também deve educar. Há um vírus que fecha as escolas e recorda que é você o único responsável pelo seu filho.

Considere o outro

Num tempo em que impera o individualismo e o salve-se quem puder. Vem um vírus que diz que você faz parte da humanidade e que essa humanidade deve ser respeitada e protegida, a sua e a do outro. Num tempo em que trocamos o contato físico e os olhos nos olhos por mensagens e encontros virtuais, chega um vírus e proíbe o contato físico e a presença do outro. E só agora, na impossibilidade mostrada pelo vírus, na ausência de abraços, nos damos conta da real dimensão da presença do outro, como o condenado que só no cárcere, conhece o verdadeiro significado da liberdade.

Num tempo em que a humanidade se vangloria do avanço tecnológico, de drones tripulados e do turismo na lua… Um vírus vem nos lembrar que nada verdadeiramente mudou, continuamos a mercê de epidemias e catástrofes, tal com os homens do ano 500 a.C , do século XIV e XVIII. Um vírus vem nos igualar e lembrar que todos temos o mesmo corpo frágil, que dói, adoece e morre.

Que esse tempo de incertezas e suspensão de rotinas possa ser também um tempo de reflexão, um salto de consciência para uma vida com mais significado, mais responsabilidade e muito mais feliz.

 

Vida Simples

Margot Cardoso (@margotcardosoé jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

 

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