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Coração dividido

Nem só de desilusões se faz um coração partido. Ele pode estar dividido entre dois amores. E isso, às vezes, é bom

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Entre os emojis mais utilizados nos celulares, ao lado das carinhas felizes, tristes ou zangadas, estão os corações. De várias cores, aos pares, pulsando, transpassados por uma flecha, embrulhados em uma fita, eles levam uma mensagem clara, em geral de amor, afeto ou carinho. Mas, entre eles, há um coração misterioso. Trata-se de um que é partido ao meio, dividido em duas partes. O que ele quer dizer, afinal? Bem, a primeira, e mais óbvia explicação é que se trata mesmo de um coração partido, o símbolo da decepção amorosa, um sinal de tristeza. Pessoalmente, acho que ele pode ter outra interpretação, ressaltando de início que interpretações são pessoais e sujeitas tanto a estímulos ou interesses próprios quanto a críticas e trovoadas de quem não vê assim. Mas, vamos lá… A interpretação que eu proponho é a de que o coraçãozinho em questão pode não estar partido, e sim dividido.

 

Mas não é a mesma coisa, caro colunista? Não, é diferente. O coração partido recebeu um golpe emocional que o rachou em dois. Algo que veio de fora. Já o coração dividido se fez por decisão ou vontade próprias. Foi um fenômeno interno, ainda que possa ter havido uma influência externa, um estímulo exterior, de alguém, de uma situação ou de um lugar. Explico… Depois de morar 20 anos em São Paulo, mudei para Curitiba, voltando às origens, como já contei no artigo Olhos velhos, olhares novos, aqui na Vida Simples.

Entre dois amores

Mas, como nada é perfeito, pensei eu, o trabalho continua, em grande parte, na capital paulista, onde, aliás, estão concentradas a maioria das empresas, com suas necessidades de treinamento, capacitação de executivos – que tem sido, em grande medida, meu foco de trabalho nas últimas duas décadas. Além disso é em São Paulo que estão as escolas de negócio onde leciono e, claro, o escritório onde funciona a redação da Vida Simples. Em outras palavras, fomos morar em Curitiba, mas, tanto eu quanto a Lu, teríamos que voltar a São Paulo com alguma frequência. E tudo bem. Trato combinado, trato feito.

E eis que aqui estou, escrevendo este texto em nossa pequena base de São Paulo, ao final de um dia em que andei bastante pela cidade. Aula na escola da Alameda Santos, com direito a um café na livraria do Conjunto Nacional, com uma demorada visita às prateleiras, e de onde saí com alguns volumes.

 

Após caminhar um pouco pela Paulista, desci a pé para os Jardins, sentindo vibrar em meu corpo a cidade que aprendi a admirar, e que tão bem me acolheu no final dos anos 1990, sem perguntar de onde eu vinha. Naquele momento, senti o coração dividido. Amo Curitiba, cidade onde me criei, estudei, cresci, aprendi a ser gente. Onde tenho amigos de infância, lembranças de família, cheiros, olhares, sentimentos. Adorei ter voltado, depois de tantos anos. Mas o que fazer agora com o amor que também aprendi a ter por São Paulo? Como viver sem a companhia das padocas, das livrarias, dos prédios, dos restaurantes, das calçadas cheias, dos parques e das ciclovias? Também pertenço a esse lugar.

Perdas e ganhos

A verdade é que, ainda que dê trabalho, vivo em duas cidades. Numa encontro a placidez nobre, o charme discreto, a organização obsessiva, a limpeza perfeita, a beleza constante, o ar europeu. Na outra sinto forte a energia produtiva, a alegria das multidões, o anonimato protetor do metrô e das calçadas das avenidas em cujos edifícios milhares de transações acontecem a cada instante gerando riqueza. Ao mesmo tempo que me permito sentir essa estranha sensação de estar em um lugar e querer estar também no outro, como parte de um filme de ficção, outro sentimento me assalta. A saudade imensa de meu pequeno filho Erik, de 4 anos, que está lá, em Curitiba, cumprindo com suas obrigações de pequeno estudante, preparando-se para a vida. Hoje não o tenho. Estamos em cidades diferentes. Pois é, não se pode ter tudo, não é mesmo?

 

Verdade, não se pode. Ele está lá, na escolinha. Eu estou aqui cuidando de assuntos que têm a ver com o futuro dele. Acho que estou aqui por ele. Portanto, não o levar para a escola nessa manhã está justificado pelo trabalho que estou fazendo agora. Mais uma vez, não estou com o coração partido. Meu coração está dividido. Tem dois lados. Um que se alegra porque está suprido, e outro que se ressente pelo vazio. Logo esses dois lados trocarão de lugar, e o sentimento de completude continuará convivendo com o de carência, em um moto-contínuo existencial absolutamente maravilhoso e emocionante.

Divisão amorosa

Reflito que a saudade está longe de pertencer ao grupo dos sentimentos negativos. Sentir saudade é um privilégio, pois pressupõe que existe alguém, ou lugar, de quem sentir falta. Meu coração dividido tem duas partes, cada uma do tamanho de um coração inteiro. E assim será enquanto for necessário. Sem queixa, sem dor, sem preguiça, sem culpa.

 

Eugênio Mussak o primeiro colunista de Vida Simples, quando perguntado, brinca dizendo que, na média, mora no Vale do Ribeira. @eugeniomussak

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